Entendendo a tributação de trusts no Brasil
Antes de falarmos sobre a tributação de trusts, precisamos entender o que isso significa. Você conhece esse conceito? O trust é um instrumento por meio do qual se cria uma relação jurídica — inter vivos ou mortis causa — entre o settlor (criador e proprietário dos bens e direitos objeto) e o trustee (pessoa incumbida de administrar o patrimônio objeto) para que este administre, nos termos delimitados no instrumento, os bens e direitos do settlor em prol de beneficiários. Siga lendo o artigo do especialista tributário, Ulisses Pizzolatti, e entenda mais!
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Inicialmente, é importante salientar que o regime jurídico do trust — e, mais especificamente, a tributação do trust — no Brasil é um assunto incipiente tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Primeiro, pois não possui regulamentação; segundo, porque esse ainda é um instituto relativamente pouco utilizado. A modalidade é oriunda de países anglo-saxões (Inglaterra, por exemplo), sem paralelo em países de tradição romano-germânica, a exemplo do Brasil. O contexto dificulta o seu estudo e a delimitação da sua estrutura jurídica. Apesar disso, o trust é utilizado no país — especialmente para planejamentos patrimoniais e sucessórios.
O trust é um instrumento por meio do qual se cria uma relação jurídica — inter vivos ou mortis causa — entre o settlor (criador e proprietário dos bens e direitos objeto) e o trustee (pessoa incumbida de administrar o patrimônio objeto) para que este administre, nos termos delimitados no instrumento, os bens e direitos do settlor em prol de beneficiários. Assim, o que ocorre é que o settlor transfere formalmente a propriedade de bens e direitos para o trustee, que terá a obrigação de controlá-los e administrá-los em favor de beneficiários.
Como se pode notar, a transferência da propriedade do settlor para o trustee, ao lado da declaração de vontade do mesmo, é condição essencial para a constituição do trust, ainda que isso ocorra de modo peculiar.
Tipos de trusts:
Há duas grandes espécies de trusts: revogáveis e irrevogáveis. Naqueles considerados irrevogáveis, há uma completa separação entre o settlor e a propriedade dos bens e direitos transferidos ao trustee. O settlor, nesse tipo de relação, não mais dispõe de qualquer controle sobre os bens e direitos transferidos e nem pode figurar como beneficiário. Em contrapartida, os trusts revogáveis se caracterizam pelo fato de que o settlor preserva o controle sobre os bens e direitos confiados ao trustee.
Portanto, podemos delinear o fluxo de recursos no trust da seguinte forma:
- O settlor transfere bens e direitos a um trustee domiciliado no exterior;
- O trustee administra esses bens e direitos conforme delineado pelo settlor no instrumento do trust;
- O trustee distribui os rendimentos dos bens e direitos aos beneficiários, de acordo com o instrumento do trust.
Sobre a tributação de trusts no Brasil:
A análise da tributação dos trusts deve partir da premissa de que a instituição de um trust implica, necessariamente, a transferência de patrimônio do settlor para o trustee. Essa transferência é uma manifestação de riqueza que potencialmente ocasionará o fato gerador de dois impostos: o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), ou o Imposto sobre a Renda.
O ITCMD é um imposto de competência dos Estados que incide sobre a transmissão de bens causa mortis ou por doação de quaisquer bens ou direitos – ou seja, transmissões a título gratuito. A transmissão causa mortis é consequência do falecimento de uma pessoa, que acarreta a transmissão do patrimônio do de cujus aos seus herdeiros e/ou legatários.
Já a doação, definida pelo artigo 538 do Código Civil, é “o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”. O conceito dado pelo direito civil ao contrato de doação é relevante em virtude do que dispõe o artigo 110 do Código Tributário Nacional:
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Ou seja: por força desse dispositivo, o direito tributário não pode prescindir dos institutos do direito civil para outorgar competências, mantendo a unidade do direito civil em todo o país. Então, o ITCMD incidente sobre as doações deve tributar esse negócio jurídico à luz do conceito dado pelo Código Civil.
Se assim for, devemos extrair os elementos essenciais que caracterizam o contrato de doação para concluirmos se há incidência de ITCMD na transferência de patrimônio do settlor para o trustee. O civilista Arnaldo Rizzardo é esclarecedor nesse aspecto:
A doação é um negócio jurídico que necessita reunir várias condições, assim elencadas:
a) Que haja uma atribuição patrimonial, a qual vem a favorecer o donatário, conforme refere o direito alemão, o que significa a diminuição em um patrimônio e o aumento correspondente em outro, o que vem a formar o elemento objetivo da doação. O donatário há de enriquecer na medida em que o doador empobrece. Este se despoja de uma parcela de seu patrimônio, em benefício do donatário, de acordo com Salvat. […].
b) Que esteja presente o ânimo de doar – animus donandi –, o qual corresponde ao aspecto subjetivo. O agente do ato revela a intenção de praticar um ato de liberalidade, ou de enriquecer o donatário, às próprias expensas. […].
c) Pressupõe o contrato a translação de alguma coisa, ou de algum direito, do patrimônio do doador para o do donatário, ainda que de valor insignificante. […].
d) Cumpre que o donatário aceite a liberalidade, o que representa o ânimo de aceitar, como se infere do art. 539 do Código Civil. […]. (Grifou-se).
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
Nessa definição, portanto, a doação é caracterizada não só pela liberalidade, mas também por um deslocamento patrimonial de uma pessoa para outra: o doador empobrece, enquanto o donatário enriquece.
No caso do trust, como apontado anteriormente, o patrimônio do settlor que é transferido não integra o patrimônio pessoal do trustee, pois passa a receber tratamento independente. Como bem ressalta Ricardo Calil:
Os bens transferidos em trust não integram o patrimônio pessoal do trustee. Ao trustee é transferido apenas o legal title (título de propriedade) dos referidos bens e direitos. Entretanto, esses bens e direitos não respondem por dívidas pessoais do trustee e não geram seu enriquecimento pessoal. Ao contrário, ao receber o patrimônio do trust, o trustee fica obrigado a administrá-lo e distribuí-lo aos beneficiários seguindo os ditames impostos pelo settlor no instrumento de trust. (Grifou-se).
CALIL, Ricardo. A incidência do imposto de renda e do ITCMD em operações com trusts. Revista de Direito Tributário Internacional Atual nº 04, p. 179-199, 2018.
Portanto, seria possível concluir, à luz do conceito de doação delineado, que não incide ITCMD na transferência de patrimônio do settlor para o trustee, mas poderia incidir no recebimento de valores pelos beneficiários a título gratuito. Contudo, não poderíamos deixar de considerar que, efetivamente, o settlor renuncia a seus bens de modo gratuito e definitivo. A corroborar esse entendimento, Rafael Maldonado Canesso pondera que a incidência de ITCMD fica condicionada à espécie de trust — se revogável ou irrevogável:
Essa transferência de ativos para a formação do trust é complexa e ainda não foi pacificada, inclusive não foi mencionada na Solução de Consulta nº 41/2020. Contudo, entendemos que se o contrato de trust for revogável (se o instituidor mantém o direito de desfazer esse trust e reaver para si todos os bens transferidos), não haverá de fato a transferência definitiva do patrimônio, não incidindo então o ITCMD. Por outro lado, no caso da instituição de um contrato de trust com uma cláusula de irrevogabilidade, estaremos diante de uma transferência gratuita e definitiva, devendo incidir o ITCMD.
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-10/rafael-canesso-tributacao-trust2. Acesso em: 05 dez. 2022.
Assim, se o trust for revogável e, por conseguinte, de caráter precário — pois pode ser desfeito —, não se pode afirmar que o patrimônio foi juridicamente transferido do settlor ao trustee. Por outro lado, no caso de trust irrevogável, se estará diante de definitividade que dá azo ao ITCMD.
A incidência do imposto sobre a renda é, à luz da doutrina, descartada no momento da transferência dos bens e valores do settlor para o trustee, pois o trustee não recebe esse patrimônio em virtude de prestação de serviços ou do emprego do seu patrimônio. Segundo o tributarista Ricardo Mariz de Oliveira, o imposto de renda deve sempre incidir sobre o acréscimo patrimonial, que “deve sempre ser originado de causas das quais participe a própria fonte produtora, que é o patrimônio ou o seu titular”. Assim, poderia haver, somente, incidência do imposto sobre a renda no momento do recebimento dos valores pelos beneficiários do trust.
Com efeito, a única manifestação da Receita Federal quanto à tributação de trusts se deu na Solução de Consulta Cosit nº 41, de 31 de março de 2020. Na oportunidade, concluiu-se que os rendimentos recebidos de fonte localizada no exterior (o trust) pelos beneficiários situados no Brasil é fato gerador do Imposto sobre a Renda. Como a Receita somente pode responder questionamento sobre tributos federais, não conseguiu analisar se há incidência de ITCMD no recebimento de valores do exterior.
Em relação a iniciativas legislativas, há dois projetos em tramitação no Congresso Nacional: o Projeto de Lei nº 4.758/2020, que trata apenas dos efeitos patrimoniais do trust, sem dispor sobre a tributação da operação, e o Projeto de Lei Complementar nº 145/2022, que, esse sim, prevê a tributação por ITCMD no momento em que um beneficiário potencial adquire direito incondicional e imediato sobre qualquer parcela de ativos sob o trust, e do imposto sobre a renda, que incidirá na transferência de bens e direitos do settlor para o trustee, se for efetuada a valor de mercador e o valor for maior do que o constante na declaração de bens e direitos.
Do exposto até aqui a respeito do instituto da modalidade, podemos concluir que, enquanto não há um marco legal, nem decisões suficientes — tanto em âmbito administrativo quanto judicial — que analisem pormenorizadamente a relação jurídica estabelecida, não há segurança jurídica para estabelecermos a correta tributação dos trusts no Brasil.
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